Autor: Cardeal Joseph Ratzinger, Prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, 2004
- Apresentar-se para receber a Sagrada Comunhão deve ser uma decisão consciente, assente num discernimento ponderado sobre o mérito de cada um para o fazer, de acordo com os critérios objectivos da Igreja, perguntando-se: «Estou em plena comunhão com a Igreja Católica? Sou culpado de algum pecado grave? Incorri em alguma penalidade (ex.: excomunhão, interdição) que me proíbe de receber a Sagrada Comunhão? Preparei-me jejuando pelo menos uma hora?». A prática indiscriminada de se apresentar para receber a Sagrada Comunhão, meramente como consequência de estar presente na Missa, é um abuso que deve ser corrigido (cf. Instrução «Redemptionis Sacramentum», nºs. 81, 83).
- A Igreja ensina que tanto o aborto como a eutanásia são pecados graves. A Encíclica Evangelium vitae, referindo-se às decisões judiciais ou leis civis que autorizam ou promovem o aborto ou a eutanásia, declara que há uma «obrigação grave e clara de se opor através da objecção de consciência. […] Portanto, no caso de uma lei intrinsecamente injusta, como aquela que admite o aborto ou a eutanásia, nunca é lícito conformar-se com ela, “nem participar numa campanha de opinião a favor de uma lei de tal natureza, nem lhe dar a aprovação com o próprio voto”». Os cristãos «são chamados, sob grave dever de consciência, a não prestar a sua colaboração formal em acções que, apesar de admitidas pela legislação civil, estão em contraste com a lei de Deus. Na verdade, do ponto de vista moral, nunca é lícito cooperar formalmente no mau. […] Tal cooperação nunca pode ser justificada invocando o respeito pela liberdade alheia, nem se apoiando no facto de que a lei civil a prevê e requer» (nº. 74).
- Nem todas as questões morais têm o mesmo peso moral que o aborto e a eutanásia. Por exemplo, se um católico não concordasse com o Santo Padre sobre a aplicação da pena capital ou a decisão de declarar uma guerra, não seria considerado indigno de se apresentar para receber a Sagrada Comunhão por isso. Embora a Igreja exorte as autoridades civis a buscarem a paz, não a guerra, e a exercerem a discrição e a misericórdia ao punir os criminosos, a tomada de armas para repelir um agressor ou o recurso à pena capital podem ser permissíveis. Pode haver uma legítima diversidade de opinião sobre a declaração de guerra ou a aplicação da pena de morte mesmo entre católicos, mas não pode haver, no entanto, sobre o aborto e a eutanásia.
- Além do discernimento individual sobre o mérito de cada um de se apresentar para receber a Santa Eucaristia, o ministro da Sagrada Comunhão pode-se encontrar numa situação em que deve recusar a distribuição da Sagrada Comunhão a alguém, como em casos de uma excomunhão declarada, uma interdição declarada ou de persistência obstinada num pecado grave manifesto (cf. can. 915).
- Em relação ao pecado grave do aborto ou da eutanásia, quando a cooperação formal de uma pessoa se torna manifesta (entenda-se, no caso de um político católico consistentemente fazer campanhas e votar em leis que permitem o aborto e a eutanásia), o seu Pastor dever-se-á reunir com ele para o instruir sobre os ensinamentos da Igreja, informando-o de que não se deve apresentar para a Sagrada Comunhão até dar fim à situação objectiva de pecado e avisando-o que, caso contrário, a Eucaristia lhe será negada.
- Quando, porém, «se apresentarem situações em que tais precauções não tenham obtido efeito ou não tenham sido possíveis», e quando a pessoa em questão, com persistência obstinada, continua a apresentar-se para receber a Santa Eucaristia, «o ministro da distribuição da Comunhão deve-se recusar a dá-la a quem for publicamente indigno» (cf. Declaração do Conselho Pontifício para os Textos Legislativos «Sagrada Comunhão de Fiéis Divorciados e que Voltaram a se Casar», nºs. 3-4). Esta decisão, propriamente dita, não é uma sanção ou uma pena. O ministro da Sagrada Comunhão tampouco está a fazer um julgamento sobre a culpa subjectiva da pessoa, mas está a reagir à indignidade pública da pessoa de receber a Sagrada Comunhão por causa de uma situação objectiva de pecado.
[N.B. Um católico seria culpado de cooperação formal com o mal e, portanto, indigno de se apresentar para a Sagrada Comunhão, se tivesse deliberadamente votado num candidato especificamente por causa da posição permissiva do candidato em relação ao aborto e/ou eutanásia. Considera-se cooperação material remota, que pode ser permitida na presença de razões proporcionais, quando um católico não partilha a posição de um candidato a favor do aborto e/ou da eutanásia, mas vota nele por outras razões.]
Contexto da Tradução
Equipa Editorial do Instituto São Teotónio
Em Maio deste ano, os jornais e meios de comunicação social divulgaram que o arcebispo da arquidiocese de São Francisco, Salvatore Cordileone, tinha notificado a presidente da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos, a democrata Nancy Pelosi, para não se apresentar para receber a Sagrada Comunhão na sua arquidiocese até ter repudiado a sua advocacia a favor do aborto, se ter confessado e ter recebido a absolvição deste pecado grave. Desde então, os média anunciaram que em 29 de Junho a política democrata comungou numa Missa na Basílica de São Pedro presidida pelo Papa Francisco, com quem ela já se havia reunido no mesmo dia.
Deve ser recordado que, poucos dias antes, na sexta-feira 24 de Junho, Festa da Natividade de São João Baptista e, em 2022, Solenidade do Sagrado Coração, a Suprema Corte Norte-Americana tinha acabado de reverter a decisão Roe v. Wade, rejeitando o aborto como direito constitucional das mulheres americanas. Contrariando a derrubada de Roe v. Wade, o Parlamento Europeu apresentou na primeira semana de Julho uma “resolução” de inclusão do “direito ao aborto” na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
A notificação enviada pelo arcebispo Cordileone a Pelosi em Maio emerge após uma carta enviada por ele em Abril deste ano com o intuito de a avisar sobre as consequências da sua insistência em promover publicamente a morte de milhões de vidas inocentes. Em entrevistas, e na própria carta de Maio, o arcebispo diz que tem vindo a rezar e a jejuar por ela. Nesta notificação, o arcebispo reitera a doutrina moral da Igreja sobre o aborto e a responsabilidade dos políticos católicos, que se aplica também aos católicos em papéis públicos e de liderança, de rejeitarem e agirem contra este grande mal.
Para este fim, o arcebispo recorre à carta escrita pelo então Cardeal Joseph Ratzinger em Junho de 2004 ao Cardeal Theodore McCarrick, à época arcebispo de Washington, e o então presidente da Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos (USCCB), Wilton Gregory, o actual arcebispo de Washington. Tendo em vista os eventos recentes e os seus precedentes, a equipa editorial do Instituto São Teotónio propôs-se a traduzir o memorando escrito pelo Cardeal Ratzinger, na época Prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, sobre a questão da dignidade de receber a Eucaristia.
A carta do Papa Emérito Bento xvi foi, por sua vez, escrita em resposta ao facto de o candidato democrata à presidência das eleições de 2004, John Kerry, se referir publicamente à sua fé católica, comparecer à Missa e ao mesmo tempo promulgar várias políticas contrárias à doutrina moral da Igreja, entre elas o aborto e a união entre homossexuais. Na Europa, o antecedente mais conhecido é o do ex-prefeito de Roma e militante pelo “direito de escolha” do aborto, Francesco Rutelli, que recebeu a Sagrada Comunhão do Papa João Paulo ii na Missa do fim do Grande Jubileu em 6 de Janeiro de 2001. A carta de Ratzinger a McCarrick e Gregory visava sobretudo estabelecer princípios gerais para serem observados pelos bispos norte-americanos cujas dioceses e igrejas eram frequentadas por figuras públicas numa situação objectiva de pecado grave manifesto.
Apesar do memorando do cardeal ser inequívoco, o artigo escrito por McCarrick por ocasião do encontro dos bispos da USCCB em Junho de 2004 em Denver, onde esta questão foi discutida, enfaticamente revela uma interpretação distorcida dos princípios gerais e especialmente dos artigos 4, 5 e 6 d’«A Dignidade de Receber a Sagrada Comunhão». Portanto, a sua aplicação pastoral pelo arcebispo Cordileone 18 anos mais tarde, sem contar por outros bispos e sacerdotes, constitui um precedente importante a favor da prática ortodoxa da doutrina moral da Igreja.
Em Fevereiro de 2004, o arcebispo que tinha avisado Kerry de que não se deveria apresentar para comungar na sua arquidiocese, enquanto o candidato estivesse no estado de Missouri, foi o cardeal Raymond Leo Burke, na época arcebispo de St. Louis. O próprio cardeal reconta a sua experiência numa presentação entitulada «Catholic Politicians and Non-Admittance to Holy Communion». Os casos de John Kerry, Nancy Pelosi e de muitas outras figuras públicas situam-se, portanto, numa longa história, tão antiga quanto a própria Igreja, de acção pastoral pelos bispos, sacerdotes e líderes católicos que buscam não apenas prevenir comunhões sacrílegas mas a própria conversão e salvação do católico em pecado grave manifesto.