O Carácter de S. Tomás

Gostaríamos agora de tentar reunir, a partir daqueles que conheceram S. Tomás, algumas indicações sobre ele, como homem e como santo…

As suas viagens e especialmente as longas caminhadas que empreendeu para chegar aos locais das suas reuniões mostram a sua robustez. Se ele tivesse de percorrer a pé a distância de Nápoles a Paris, depois a Colónia e voltar, depois de Paris a Roma e voltar, e novamente de Paris a Nápoles, para além das várias viagens para ir aos capítulos provinciais, pode-se dizer que ele deve ter percorrido 15.000 quilómetros a pé. Isto ignora a possibilidade – quase uma certeza – de que várias destas viagens poderiam ter sido feitas pelo menos em parte por mar ou por rio. A tempestade que enfrentou (provavelmente no regresso a Paris em 1268) é uma prova disso; uma anedota… que o descreve a puxar um barco sozinho e contra a corrente, enquanto os marinheiros tiveram grande dificuldade em fazê-lo. Isto é uma recordação de uma viagem fluvial e um eco do poder físico de S. Tomás.

[Uma testemunha contemporânea] relata como opinião comum entre todos aqueles que ele tinha sido capaz de interrogar: “Acreditavam que o Espírito Santo estava verdadeiramente com ele, pois tinha um rosto constantemente alegre, doce e afável”.  [Outro biógrafo] reflecte a qualidade contagiante deste traço, [escreveu que] inspirava alegria a todos aqueles que o encaravam.  Em defesa desta alegria sobrenatural, podemos acrescentar um detalhe invulgar (o único eco concreto que nos chegou das aulas de S. Tomás!), que demonstra que possuia também sentido de humor. Remigio de Florença conta que ele fez uma piada alusiva à solenidade invulgar das celebrações litúrgicas de São Martinho, que após os camponeses terem ficado a nadar na abundância da colheita de Outubro, puseram o santo acima de S. Pedro.

Não temos qualquer indicação sobre a frequência de tais saidas, mas o que sabemos de outras fontes sobre a vivacidade das reacções de S. Tomás leva-nos a crer que estas não eram raras. Contudo, também foi dito que ele possuía uma humildade e paciência raríssimas e que jamais magoou alguém pelo uso de palavras injuriosas.  Bartolomeu sublinha que, mesmo durante disputas, onde é frequente ir-se longe demais, foi sempre doce e humilde, sem nunca usar palavras grandes e afectadas…

[S. Tomás era um professor] em quem os seus alunos confiavam e que nunca os proibiu de falar francamente ou de gracejar com ele. Mostra-o também entre os seus jovens frades, a passear ou a voltar de uma sessão solene na universidade. Por vezes estas histórias datam do primeiro período Parisiense: os episódios de Nápoles mostram S. Tomás mais ressentido com o seu tempo e a não hesitar em deixar recriações corriqueiras se, ali, o seu tempo se perdesse em conversas frívolas. Preferia muito mais caminhar sozinho nos claustros ou no jardim e aí voltar às suas reflexões habituais depois de ter despachado as aulas que o levavam à tribuna.

Este Italiano do Sul, com fortes ligações à sua família, tinha uma piedade muito concreta e encarnada. Acabámos de recordar o episódio da cura de Reginaldo pela imposição de uma relíquia de Santa Inês, que levava consigo por devoção…  Recorda-se, sem dúvida, o episódio da sua jovem irmã morta por um raio enquanto ele dormia ao seu lado, aí ganhou o hábito de fazer o Sinal da Cruz durante as tempestades e de repetir “Deus encarnou, Deus sofreu por nós”.  Se recordarmos que isto ocorreu durante a terrível tempestade que ele suportou e que só ele permaneceu tranquilo, enquanto que os próprios marinheiros se assustavam, veremos aqui não um sinal de medo, mas sim a expressão de uma Fé que não se absteve de mostrar em gestos visíveis.

Sem fazer um inventário de todas as histórias ou testemunhas, parece que podemos identificar, com pelo menos alguma certeza, três traços característicos da forma de rezar de S. Tomás. A ligação da oração ao estudo é claramente o primeiro traço; Tocco resumiu-o bem como sendo um dos pontos de luta com os [padres diocesanos da Universidade de Paris] que não conseguiam compreender que é possível ser salvo apenas através sola studii contemplatione.  O segundo ponto é certamente a sua devoção à Eucaristia, não à adoração do Santíssimo Sacramento como veremos mais adiante, mas sim ao sacramento celebrado todos os dias. O testemunho da sua presença em duas missas diárias – uma que celebrava, a outra que assistia – é repetido com demasiada frequência para que possamos duvidar desta sua devoção.  Também tinha, ao que parece, o hábito de recitar no momento da elevação a segunda parte do Te Deum: Tu rex glorie Christe, Tu Patris sempiternus es Filius, até ao fim.  Este ponto pode ser compreendido se nos lembrarmos que, nesse momento, o cântico recorda todo o conjunto de “mistérios” da vida de Cristo. Foi especialmente durante a celebração da Missa que S. Tomás teve os êxtases prolongados dos seus últimos meses: o que ocorreu no Domingo de Paixão (26 de Março de 1273) e o da festa de São Nicolau oito meses mais tarde (6 de Dezembro de 1273).

Uma vez que S. S. Tomás tinha acabado o Q. 90 da Tertia Pars, a composição do tratado sobre a Eucaristia (concluído anteriormente) tinha, portanto, ocorrido aproximadamente entre estas duas datas. A evolução já vista em Orvieto, na altura da composição do Ofício do Santíssimo Sacramento, chegou também aqui ao seu fim e o autor experienciou na sua própria pessoa o que tinha escrito: “Pelo poder deste Sacramento, a alma é restaurada pelo facto de se alegrar espiritualmente e, de certa forma, estar intoxicada pela doçura da bondade divina, conforme está escrito no Cântico (5: 1): Comei, meus amigos, e bebei; bebei bem, ó bem amados”.

Temos uma confirmação semelhante do terceiro traço, que se destaca ainda mais vigorosamente, a sua devoção ao crucifixo: quando é apresentado em oração ou em levitação, é diante da imagem do crucificado ou em frente ao altar, símbolo litúrgico de Cristo.  Se houvesse necessidade de uma maior justificação deste último ponto, bastaria relatar como ele fala de Cristo nos seus ensinos ou nas suas pregações:

«Quem quer que queira ser perfeito na vida, nada mais é necessário fazer senão desprezar o que Cristo desprezou na cruz, e desejar o que nela Ele desejou.

Nenhum exemplo de virtude deixa de estar presente na cruz. Se nelas buscas um exemplo de caridade, — “ninguém tem maior caridade do que aquele que dá sua vida pelos amigos” (Jo. 15, 13). Ora, foi o que Cristo fez na cruz… Se procuras na cruz um exemplo de paciência, nela encontrarás uma imensa paciência… Se desejares ver na cruz um exemplo de humildade, basta-te olhar para o crucifixo.

Se queres na cruz um exemplo de obediência, segue Àquele que se fez obediente ao pai, até à morte… Se na cruz estás procurando um exemplo de desprezo das coisas terrenas, segue Àquele que é o Rei e o Senhor dos Senhores no qual estão os tesouros da sabedoria, mas que na cruz aparece nu, ridicularizado, escarrado, flagelado, coroado de espinhos, na sede saciado com fel e vinagre e morto.»

…S. Tomás nunca deixa de nos lembrar que “cada uma das acções de Cristo é instrução para nós”, e que esta era a sua regra de vida.

… [Em 1273], enquanto celebrava a Missa na capela de São Nicolau, S. Tomás sofreu uma transformação espantosa (fuit miratatione commotus): “Depois daquela missa, nunca mais escreveu, nem sequer ditou mais nada, livrou-se até de todo o seu material de escrita [organa scriptionis]; estava a trabalhar na terceira parte da Suma, no tratado relativo à penitência”. Reginaldo [o seu secretário], que estava estupefacto e não compreendia porque é que S. Tomás abandonava o seu trabalho, o Mestre respondeu simplesmente: “Não posso mais”. Mais tarde voltou a perguntar e Reginaldo recebeu a mesma resposta: “Não posso mais porque tudo o que escrevi é como palha para mim, em comparação como o que me foi revelado”.

S. Tomás morreu 3 meses depois, a 7 de Março de 1274.

 

Selecção de Jean Pierre Torrell, O.P., Saint Thomas Aquinas, vol1, The Person and his Work.