O Magistério e o Idealismo Moderno

Precisões preliminares

Quando se fala do magistério da Igreja contemporânea e dos seus fundamentos, é necessário compreender bem os termos, mais uma vez. Não queremos dizer que exista uma Igreja contemporânea substancialmente diferente daquela que sempre existiu. Queremos simplesmente considerar o modo como as autoridades, na sua maioria, entendem e exercem a potestas magisterii hoje, quais são os princípios que fundamentam este entendimento, e em que consiste este exercício do magistério.

É necessário precisar, desde já, que não é possível saber o que se passa na cabeça de cada autoridade eclesiástica com poder de ensinar. Trata-se, portanto, de observar o modo como as autoridades exercem esse poder de ensinar, e de extrair alguns princípios de certos textos recentes do próprio magistério.

Evidentemente, encontramos um bom número de autoridades que entendem de modo tradicional o poder de ensinar, e que o exercem devidamente. Estas autoridades querem guardar, declarar, explicitar e defender o depósito das verdades, que é objectivamente fechado e que foi transmitido pelos Apóstolos até aos nossos dias, sem pretender acrescentar novas verdades. No entanto, um bom número de autoridades exprimem uma noção diferente daquilo que é tradicionalmente entendido como potestas magisterii. É neste sentido que podemos falar de uma nova concepção do magistério, e não no sentido de a Igreja ter mudado a sua concepção do seu próprio magistério.

Influências do idealismo moderno

Quais são os fundamentos desta nova concepção do magistério, defendida por muitos e até, infelizmente, pela maioria daqueles que possuem hoje a faculdade de ensinar? Essa nova concepção tem as suas raízes na filosofia moderna, que acabou por tocar praticamente todos os espíritos contemporâneos. Em particular, a sua fonte encontra-se nesse grande princípio da filosofia moderna que é o idealismo, e segundo o qual não nos é possível conhecer nada, a não ser as nossas próprias ideias e os nossos a priori. Aplicado à religião, o idealismo implica o agnosticismo: é impossível saber com certeza que Deus existe; se Deus existe, não nos é possível tomar conhecimento de uma eventual revelação exterior. Outro princípio da filosofia moderna é o imanentismo, segundo o qual só tem valor aquilo que vem do próprio homem. Como é evidente, o imanentismo é consequência do idealismo. Aplicado à religião, o imanentismo implica que a revelação se encontra no próprio homem, reduzindo-se portanto ao chamado sentimento religioso. Ora, este sentimento religioso – como todo o sentimento – muda, evolui e é próprio de cada um. A religião torna-se, assim, completamente subjectiva, já que não pode ter outro fundamento senão esse sentimento religioso, emergente do subconsciente do indivíduo. Ora, esse sentimento é, por sua vez, o único fundamento de todas as formas exteriores de religiosidade, as quais só têm valor na medida da sua conformidade com o sentimento religioso individual. Consequentemente, a doutrina da fé não é senão a expressão desse sentimento, fruto da elaboração humana: a liturgia deve estar de acordo com o sentimento religioso; tal como a moral. Daqui decorre ainda que devemos elogiar as outras religiões, pois estas são a expressão de sentimentos religiosos de outras pessoas e de outras culturas. Numa palavra, é a religião do homem. Tudo deve estar de acordo com o sentimento religioso extraído do seu subconsciente. As consequências evidentes de tal sistema são o relativismo, o indiferentismo religioso, a evolução do dogma, da moral, e das formas do culto prestado a Deus.

Tendo por base uma tal concepção da religião, hoje amplamente difundida, o que resta do papel do magistério eclesiástico? O magistério deve simplesmente sancionar as formulações humanas que exprimem os sentimentos religiosos. O seu papel é explicitar a consciência comum dos fiéis, reformando-se ao ritmo da evolução dessa consciência no tempo. O dogma, neste quadro, é reduzido a isto: os homens exprimem o seu sentimento, chegam a acordo quanto a uma formulação mais ou menor comum desse sentimento que partilham, e o magistério sanciona essa formulação da consciência comum, com o propósito de a exprimir publicamente e de a regular. Estas construções doutrinais, sancionadas pelo magistério, são chamadas “dogmas”. E como essas construções podem mudar, à medida que o sentimento religioso evolui, o dogma pode, evidentemente, mudar também.

As funções do magistério no idealismo moderno

No sistema idealista assim descrito, a evolução da doutrina e da moral é fruto de uma oposição, de um combate entre duas forças antagónicas: uma conservadora, e outra progressista. A força conservadora é a autoridade religiosa; a força progressista é o conjunto dos fiéis e dos teólogos, que pensam a fé para a adaptar à mentalidade da época. E desta oposição nasce um progresso no magistério, no sentido da dialética hegeliana, a qual se desdobra em três fases: tese, antítese e síntese. A primeira função do magistério é, portanto, exprimir o sentimento religioso da consciência comum, como fruto deste progresso dialético.

A segunda função do magistério eclesiástico, neste quadro evolutivo, é conservar a unidade dos fiéis, adoptando a fórmula que melhor exprima a sua consciência colectiva. Com efeito, o magistério deve vergar-se e conformar-se às fórmulas e aos pedidos dos fiéis, sem no entanto impedir as manifestações, as dissensões que surjam entre eles, e que começariam a revelar o aparecimento de uma nova consciência comum. O magistério tem assim um papel de regulador, que consiste em adaptar as fórmulas prescritas na doutrina à consciência comum de uma época, e garantir, deste modo, a preservação de uma certa unidade de fé entre os membros da sociedade.

O conjunto deste sistema encontra-se já descrito, essencialmente, na encíclica Pascendi Dominici gregis do papa São Pio X, que condenou o modernismo, em 1907. Constatamos, no entanto, que muitas atitudes e declarações actuais entram plenamente nessa descrição. Penso que é importante perceber isto, para que se compreenda as implicações sociais, políticas e humanas da crise actual da Igreja e da sociedade: o problema principal não é político, não é o socialismo ou a República laica. O primeiro e principal problema da crise actual é o modernismo que invadiu a Igreja, a todos os níveis, muitas vezes sem que as próprias pessoas que o defendem ou difundem estejam conscientes disso: é um estado de espírito sistémico, que não é uma realidade do passado, mas um fenómeno actual. Muitos são aqueles que se queixam, legitimamente, e que querem lutar contra as consequências nefastas deste idealismo moderno, mas isso não é suficiente. É necessário, sobretudo, erguermo-nos contra os maus princípios que estão na origem desse idealismo! Por exemplo, não basta que nos oponhamos, na prática, à comunhão dada aos divorciados recasados que vivem more uxorio, é necessário que nos esforcemos por lutar contra os princípios teóricos que conduziram a tais consequências. Caso contrário, a guerra está perdida à partida.

Lumen gentium, 12

Consideremos os textos do concílio Vaticano II, e vejamos se neles se encontram passagens que possam estar associadas à nova visão do magistério que acabámos de descrever. Em particular, queremos considerar os textos que conferem um papel determinante à consciência comum, e que fazem dessa consciência uma norma de religião. Podemos encontrar esta ideia, sobretudo, numa passagem da Lumen gentium, que parece ir neste sentido. É o parágrafo 12:

“O Povo santo de Deus participa também da função profética de Cristo, difundindo o seu testemunho vivo, sobretudo pela vida de fé e de caridade oferecendo a Deus o sacrifício de louvor, fruto dos lábios que confessam o Seu nome (cf. Hebr. 13,15). A totalidade dos fiéis que receberam a unção do Santo (cfr. Jo. 2, 20 e 27), não pode enganar-se na fé; e esta sua propriedade peculiar manifesta-se por meio do sentir sobrenatural da fé do povo todo, quando este, «desde os Bispos até ao último dos leigos fiéis» (cf. Santo Agostinho, De Praed. Sanct. 14, 27), manifesta consenso universal em matéria de fé e costumes. Com este sentido da fé, que se desperta e sustenta pela acção do Espírito de verdade, o Povo de Deus, sob a direcção do sagrado magistério que fielmente acata, já não recebe simples palavra de homens mas a verdadeira palavra de Deus (cfr. 1 Tess. 2,13), adere indefectivelmente à fé uma vez confiada aos santos (cf. Jud. 3), penetra-a mais profundamente com juízo acertado e aplica-a mais totalmente na vida.”

A doutrina tradicional neste ponto era que a infalibilidade in credendo dos fiéis (o facto de que “a totalidade dos fiéis […] não podem enganar-se na fé”) está sempre na total dependência da infalibilidade in docendo do magistério. Noutros termos, a infalibilidade in credendo não existe senão na medida em que exista também infalibilidade no ensinamento do magistério, pois o sujeito primeiro e imediato de infalibilidade é a hierarquia da Igreja, e não o povo de Deus. Como se vê, este texto da Lumen gentium, 12 pode dar azo a uma interpretação um pouco diferente. A Lumen gentium começa por falar, com efeito, do sacerdócio comum de todos os fiéis, do qual derivaria uma função profética, da qual derivaria então a infalibilidade. Esta infalibilidade, tal como o sacerdócio, parece assim pertencer em primeiro lugar e imediatamente a todo o povo de Deus, e não à hierarquia: esta infalibilidade resultaria do sensus fidei dos fiéis. Segue-se que o magistério parece servir apenas como um guia, com o papel de sancionar, pela sua autoridade, a infalibilidade exprimida pela fé dos fiéis, enquanto o sensus fidei dos fiéis faz com que o povo de Deus não receba uma palavra humana, mas uma Palavra divina, uma Revelação. Significa isto que é necessário ter o sensus fidei, acompanhado de uma espécie de consentimento universal dos fiéis, para que se possa aceder à Palavra de Deus? O magistério eclesiástico parece, no fim de contas, estar ordenado ao sentido da fé dos fiéis, e não o contrário.

Mysterium Ecclesiae e a interpretação da Lumen Gentium

Num documento da Congregação para a doutrina da fé, datado de 1973 e intitulado Mysterium Ecclesiae, encontramos também uma alusão a esta nova concepção do magistério: afirma-se que o magistério não se reduz a sancionar o consentimento dos fiéis já expresso – o que consiste em reconhecer que esta é uma das suas funções, o que não se verificava antigamente.

“Por conseguinte, se bem que o sagrado Magistério se aproveite da contemplação, do comportamento e das investigações dos fiéis, a sua função, todavia, não se reduz simplesmente a ratificar o consenso por eles expresso; mas, mais do que isso, o mesmo Magistério pode prevenir e exigir tal consenso, na explicação e interpretação da palavra de Deus escrita ou transmitida de outros modos.”1

Como é evidente, citámos apenas uma curta passagem deste documento da Congregação para a doutrina da fé, tal como nos cingimos a uma curta passagem do texto conciliar. Se estes textos podem dar azo a ambiguidades, a verdade é que encontramos neles, sobretudo no texto da Lumen gentium, uma doutrina bastante tradicional sobre esta questão do magistério.

Como podemos, todavia, interpretar estas concessões à doutrina moderna em matéria de magistério? Sabe-se, como disse o P. Schillebeeckx, que certos especialistas quiseram empregar deliberadamente expressões ambíguas e diplomáticas nos textos do Concílio, com o fim de poderem delas tirar conclusões divergentes. No caso que nos interessa aqui, isto é realmente manifesto, por exemplo quando Karl Rahner utiliza precisamente a passagem da Lumen gentium citada acima a propósito do sentido da fé dos fiéis, para daí deduzir que o magistério vem da Igreja dos crentes (ecclesia discens), e não da hierarquia (ecclesia docens). Chega mesmo ao ponto de confundir infalibilidade com eficácia: para ele, é infalível o magistério que é eficaz, ou seja, que convence as pessoas. E afirma que é ao povo de Deus que cabe mostrar à hierarquia a fé que deve ser exposta pelo magistério. Encontramos estas afirmações em várias das suas obras: Novos ensaios e Teologia da experiência do espírito. Podemos certamente dizer que se trata simplesmente aqui de uma interpretação errónea dada por Rahner sobre um texto do Concílio. No entanto, é inegável que uma tal interpretação encontra muitas vezes eco, infelizmente, na prática quotidiana da Igreja.

Conclusão

Alguns dirão que um magistério assim concebido e assim exercido, nesta óptica moderna, não é verdadeiramente magistério – e concluirão então que lhe falta um qualquer valor de autoridade. Talvez seja assim. No entanto, na prática, não podemos sondar os pensamentos íntimos de cada autoridade, e não podemos portanto julgar a sua intenção: é impossível sabermos em que casos concretos a autoridade aplicaria esses falsos princípios. Devemos então considerar o conjunto das declarações de uma autoridade imbuída desses princípios novos como magistério com o grau de autoridade próprio a esse ensinamento (ou seja, um magistério não infalível), o qual reclama o grau de assentimento correspondente. Uma autoridade eclesiástica que concebe e exerce o magistério no sentido descrito acima dificilmente poderá definir uma verdade com a nota da infalibilidade – a menos, claro, que o exprima de modo explícito.

Concluindo, podemos cingir-nos a uma constatação: o magistério de uma grande parte das autoridades eclesiásticas actuais da Igreja é um magistério liberal, fundado sobre os princípios da filosofia moderna (sem disso se dar conta na maioria dos casos, sem dúvida, aplicando simplesmente os princípios aprendidos nos seminários e nas faculdades católicas), e que concebe o magistério como um instrumento que visa exprimir a consciência geral sob uma certa unidade, sem a qual já nem existiria religião propriamente dita. A concepção de um magistério que tem por fim conservar, declarar, expor, explicitar e defender o depósito das verdades que está objectivamente encerrado e que foi transmitido pelos Apóstolos até aos nossos dias, sem querer acrescentar novas verdades, é para muitos uma concepção ultrapassada. Compreende-se, assim, a razão pela qual as verdades de fé se encontram abaladas, pois o seu próprio valor na Revelação divina é posto em causa. Para responder às dúvidas ou aos erros dos dias de hoje, ou para resolver os erros doutrinais futuros, será então necessário, em primeiro lugar e antes de tudo, restabelecer a autoridade do magistério hierárquico da Igreja. Só a este cabe ensinar a fé com autoridade.

1 S. CONGREGATIO PRO DOCTRINA FIDEI, “Declaratio Mysterium Ecclesiae circa catholicam doctrinam de Ecclesia contra nonnullos errores hodiernos tuendam”, 24 de Junho de 1993, in AAS, 65, 1973, p. 369-408.